4º Concerto do Coral Paradoxal
CANTAR A CÂNTAROS
No aconchego de seu lar, na modorra de seu escritório, o coralista olha pela janela e considera o temporal desfeito que vai lá fora. “Cantarei?”, pergunta aos botões do chambre de lãzinha. “Cantarás!”, responde-lhe uma voz misteriosa. Contemplando sua pantufa, seu chazinho com torrada bem barrada, seu programa preferido na tê vê, pergunta-se de novo : “Hum, cantaremos?”. “Cantareis!”, ressoa a mesma voz. Depois veio a saber que eram afinal duas vozes, um baixo e um soprano, mas muito harmoniosas. Uma era o chamado “imperativo do coralista”, uma espécie de voz da consciência, mas mais musical e a outra era o “princípio do prazer”, de que nem vou falar, para não chocar as senhoras assim mais...envergonhadas.
Faz-se o coralista à tempestade. Chovia a cântaros, uma chuva boa, sólida, enviesada, abrangente, que não deixa nada de fora. Também fazia muito vento. Chovia a potes, chovia cães e gatos, chovia como Deus dará, chovia como o raio, iiih! o que chovia! Pronto, chovia. Deus Nosso Senhor, pousado sobre o pico da torre da Igreja do Santo Condestável (o que ele adora aquele poiso, valha-nos Deus!) contava os coralistas à passagem. Vem um com o dossier na cabeça a fazer de pára-raios, outro corre de lado, agarrado às abas da gabardina, de rabo virado para leste, de onde vem a bátega.
E pronto. Estamos todos. Começa-se a sessão de vocalizos. Chega a Jão com os garruços, todos enfiam o barrete, se agasalham e vamos cantar para a porta da Igreja.
Isto de cantar às portas das Igrejas houve épocas em que era muito mal visto. Hoje já não, também porque há muito pouca gente para ver. Aspectos positivos : estava frio, estava uma lua cheia maravilhosa, estávamos todos muito divertidos. Até tivemos público e tudo! Mas se não tivéssemos, raios nos partam se não cantávamos na mesma. Era só o que faltava, não cantar por falta de público! Vida de artista é assim mesmo.
Como já disse, estiveram presentes várias excelências e eminências. Sem contar o Mais Alto, que esteve presente, embora invisível e confortavelmente sentado (esperto!), os outros estiveram todos visíveis e aguentaram firme, ao frio e à cacimba, todos os doze minutos e meio do concerto. O senhor Pároco disse umas palavras (“Não tenho nada a ver com isto, isto é outro circuito!”). Quando o Presidente da Junta disse que ia dizer umas palavras houve um grito abafado de horror entre os circunstantes, mas não foram muitas palavras e o senhor Vereador da Cultura, que andava por ali a fazer a ronda dos Coros, deu um passo em frente e disse : “Obrigado!” e recuou de novo para a sombra.
E pronto. Foi assim. Depois, claro, há sempre uns coralistas que resolvem ir comer bifes. É que um concerto de doze minutos, pá, sai-nos do couro! E a malta fica fraquinhos. Agora para o Cosfa podiam era comer os bifes ANTES do concerto, para aguentar bem as notas mais compridas. Não sei. É só uma ideia.
1 comentário:
Ai meninos, que pena tenho de não ter podido ir cantar convosco... Logo os malfadados micróbios tinham de escolher precisamente este dia para me virem fazer uma visitinha. É que isto de sing in the rain, que é como quem diz cantar à fúria dos elementos, não é para qualquer um. Só mesmo os temerários paradoxais podem ser capazes de tais façanhas. Para a próxima, não faltarei.
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